A devoção às divindades homenageadas é celebrada em diversas cidades de vários estados brasileiros, sendo que em Goiás a festa da Caçada da Rainha é realizada também nos municípios de Flores de Goiás, São João D’Aliança (povoado do Forte) e Cavalcante (povoado de Capela), cada uma com suas especificidades.
Segundo a versão divulgada pela Secretaria de Turismo do Município de Colinas do Sul ao longo dos últimos anos, a origem da Caçada da Rainha "resultou do medo que a Princesa Isabel teve do pai, Pedro II, ao saber que ela havia assinado a Lei Áurea, libertando os escravos. Daí, temendo a repreensão, assim que soube que o imperador estava vindo de Portugal para o Brasil, a princesa reuniu sua comitiva e, à cavalo, foi esconder-se na mata, até seu pai se acalmar. Assim que soube que a filha havia fugido, Pedro II preparou outra comitiva para procurar Isabel. A notícia correu a província e, ao saberem, os escravos resolveram preparar uma festa de agradecimento para recepcionar a princesa."
A festa é encenada anualmente na cidade e o tradicional Batuque da Rainha refere-se à festa da alforria, quando os escravos libertos comemoravam a recém-alcançada liberdade.
ORIGENS
A partir de narrativas orais, concluiu-se que a celebração denominada Caçada da Rainha veio do extinto arraial São Félix, em Goiás, que foi transferido para o povoado de Lages no final do século XIX, por Sebastião da Silva Coelho. Algumas décadas depois, em 1954, Herculana da Silva Coelho foi a primeira rainha do então povoado de Almécegas, que foi fundado por Sabino da Silva Coelho, no dia 12 de maio de 1953. Em 30 de dezembro de 1987, o povoado foi elevado à categoria de município e passou a se chamar Colinas do Sul.
Segundo a definição dada pelo historiador Luis Câmara Cascudo, a festa é um tipo de tradição folclórica de raízes luso-africanas, devido à mistura de manifestações católicas vindas de Portugal com a cultura dos escravos africanos. A Caçada é celebrada com motivo de folia ou festa popular católica, com representação cênica, acompanhada de música e dança. Outra característica destes festejos é a distribuição de alimentos, que é um costume herdado da Idade Média portuguesa e das tradições indígenas, que algumas festas religiosas ainda preservam.
Com uma localização geográfica privilegiada, situada na microrregião da Chapada dos Veadeiros, Colinas do Sul apresenta uma diversidade de atrativos de lazer ecológico, tais como rios, cachoeiras, grutas, sítios arqueológicos, trilhas, pesca e náutica. Assim, a festa atrai muitos turistas, que complementam seu tour ecológico assistindo e participando das manifestações de cultura tradicional com caráter religioso e popular. Outro fator importante é que o evento possibilita a consolidação da identidade cultural do município.
Em 2006, gravamos o filme documentário "A Festa da Fé", que mostra os foliões de Colinas do Sul girando o município na cavalgada da fé. É um belíssimo registro que você já pode assistir completo online:
GIROS E POUSOS DE FOLIA
Na cidade, a festa é composta pelos pousos de folia, que se caracterizam quando os foliões “giram” a cavalo nas mediações do município. Passando em média 15 dias na zona rural, os cavaleiros vão levando à frente as bandeiras das divindades e demonstrando sua religiosidade com cantos aos padroeiros. São dois grupos de foliões, contendo aproximadamente 30 pessoas em cada, com hierarquias de funções e regras próprias. Durante a peregrinação, eles percorrem os povoados e fazendas da região, manifestando sua religiosidade, levando as sagradas bandeiras e arrecadando doações em dinheiro e outros donativos.
Os foliões são recebidos pelos devotos com gestos de oferendas e festas, reavivando a religiosidade e a socialização da comunidade. Vale lembrar que os foliões são vistos como representantes do sagrado. Desta forma, costumes como o forró e a distribuição de alimentos e bebidas alcoólicas às pessoas criam uma alternância entre o sagrado e o profano. Os foliões cantam e dançam modas, catiras e curraleiras ao som de instrumentos como caixa, violão, pandeiros, palmas e sapateado. No entanto, no fim predominam as rogas de vida e saúde a todos.
Durante o período dos “giros”, os foliões praticam cantos religiosos, como o Canto de Chegada, Bendito de Mesa e Despedida. Também brincam as catiras, curraleiras, minuanas, carolina e modas de viola. Tradicionalmente, são duas folias que percorrem a região, a Folia do Giro de Cima e a Folia do Giro de Baixo. Estas designações foram criadas com o intuito de atender o devoto interessado em oferecer um pouso de folia.
Cada grupo de foliões é constituído de dois encarregados, que podem ou não ser os alferes e, no mínimo, doze foliões; entre eles estão guias, contra-guias, caixeiros, bagageiros, arrieiros, campeiros e penitentes. Ao fim dos giros de folia, começam os ritos do Arremate com a Entrega da Folia na Igreja Católica, para que, no segundo domingo do mês de julho, a Caçada da Rainha seja realizada.
O termo “pouso” refere-se ao fato de os foliões dormirem nas mediações da residência do festeiro. O costume envolve a armação de redes embaixo das árvores para que os foliões passem a noite. Os devotos preparam um lugar para os foliões repousarem, daí o nome “pouso de folia”. O lugar é geralmente do lado de fora das residências, pois são muitas pessoas e as casas são relativamente pequenas. Durantes os pousos, os foliões criam um ambiente descontraído, onde contam causos e oferecem bebidas alcoólicas aos visitantes. Antes da chegada dos foliões o lugar é modificado, tornando-se apto a receber os rituais festivos.
Entre os momentos mais divertidos dos pousos de folia está o canto das curraleiras, que são sátiras criadas pelos foliões remetendo a algo inusitado ocorrido durante os pousos ou na comunidade, como brigas, namoro proibido, traição, entre outros. Elas servem, também, para demonstrar insatisfação, protestar e denunciar os abusos de autoridade que possam ter ocorrido na cidade.
As folias que giram na roça e na cidade são as mesmas, dando aos devotos a possibilidade de manifestarem sua religiosidade e pagarem suas promessas. O dia da Caçada da Rainha inicia-se com o giro da Folia de Rua do Imperador do Espírito Santo, ainda pela manhã. Os foliões vão a pé, peregrinando de casa em casa, convidando a população para assistir ao reinado do imperador por meio das cantorias. Neste momento, também são feitos pedidos de contribuições para os festeiros em nome das divindades.
Ao final do giro da Folia de Rua, é realizado o Arremate na residência do alferes, onde os foliões almoçam e, em seguida, dão início ao Reinado do Imperador, que ocorre antes de os cavaleiros saírem à procura da rainha. A Folia gira novamente na manhã da segunda-feira seguinte, antes do Reinado do Rei e da Rainha.
BANDEIRA E SIGNOS
As bandeiras do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora do Rosário estão presentes em todos os rituais sagrados que integram a Caçada da Rainha e são confeccionadas por pessoas da comunidade. A bandeira do Divino é vermelha, com um desenho de uma pomba, símbolo da divindade. Já a de Nossa Senhora é branca, com a imagem da santa desenhada. Em cada bandeira há várias fitas de tecidos em que são amarradas notas de dinheiro pelos devotos, que têm o hábito de reverenciá-las, ato que realizam todas as manhãs do giro de folia, demonstrando respeito e veneração.
Além das bandeiras, outros signos emblemáticos compõem a folia em Colinas do Sul. O primeiro deles é a cruz, um dos símbolos sagrados do cristianismo. O cruzeiro está presente nos pousos de folia, como primeiro elemento à frente na chegada dos foliões. Outro signo é o arco, que representa o elo entre Deus e os homens. O arco aparece nos pousos e em frente à igreja, no dia do arremate. Os moradores e as pessoas presentes se posicionam atrás da armação; ao se aproximarem da residência do festeiro, todos os foliões passam por baixo do arco, renovando a aliança com as divindades.
O altar é sempre preparado durante os pousos, na sala do morador, enfeitado com flores, imagens e velas. Para os foliões, a imagens se saúdam e seus poderes são um só. Após a cantoria, todos os foliões se ajoelham e se benzem com o sinal da cruz, em um dos principais momentos de devoção. A fogueira é outro signo presente nos pousos e no dia do arremate. Ela simboliza a chama do Divino Espírito Santo.
A CAÇADA E O BATUQUE
Após as peregrinações e a realização do Reinado do Imperador, ocorre a Caçada da Rainha propriamente dita, quando uma comitiva composta por Rei, Rainha, Príncipe, Princesa e Imperador é escondida no cerrado e os cavaleiros saem à sua procura. A partir das 15 ou 16 horas, a corte é levada pelos caretas, que são homens mascarados que costumam divertir as pessoas e ajudar na organização da festa, para se esconderem em um local que já foi chamado de capão da rainha.
Nem todos os caretas ficam envolvidos em esconder a corte. Alguns permanecem na cidade, fechando as vias para evitar que os cavaleiros saiam antes que a rainha esteja devidamente escondida. Enquanto isso, os participantes montados a cavalo se posicionam e esperam pelo sinal que autoriza a partida em busca do rei e da rainha. O rei, o príncipe e o alferes do Divino são escondidos separados da rainha, princesa e alferes de Nossa Senhora. Existe um tom de disputa entre os cavaleiros relativo a quem consegue encontrar a comitiva primeiro. Quando o esconderijo é descoberto, soltam-se fogos para anunciar aos demais cavaleiros, no entanto, o mérito é maior para o cavaleiro que encontra a rainha.
Enquanto os cavaleiros “vão à caça”, o ritmo do lundu ou Batuque da Rainha é embalado pelo som da onça no Salão Paroquial. O instrumento inusitado produz o som característico do batuque. A onça é um instrumento bifônico, ou seja, gera dois sons ao mesmo tempo. Um é percussionado com duas baquetas, emitindo um som de bumbo, e o outro é fricicionado internamente. Por isso, são necessários dois músicos para domá-la. Para construir a onça, as pessoas da comunidade utilizam um pedaço de tronco de árvore oco (mirindiba, tambor e marinheiro, por exemplo), que é tampado com couro de um lado das extremidades, com uma vareta no centro.
O retorno da comitiva para a cidade de Colinas do Sul só ocorre quando o rei e a rainha são encontrados e começam a organizar a volta de forma hierárquica. Assim, os cavaleiros se posicionam em duas fileiras, uma liderada pelo alferes do Divino Espírito Santo, que é puxada pelo rei e pelo príncipe, e outra liderada pelo alferes de Nossa Senhora do Rosário, puxada pela rainha e pela princesa.
Os demais cavaleiros seguem nas fileiras. Tradicionalmente, cada par é formado por um homem e uma mulher, que seguram um lenço, que deve ser preferencialmente vermelho ou branco, cores que representam as divindades, sendo que os homens ficam do lado esquerdo e as mulheres, do lado direito.
Quando os envolvidos na caçada chegam à praça da cidade são recepcionados pelas pessoas com foguetes e o toque do sino da igreja. O rito de chegada é composto pelos caçadores e pela realeza. Nesse momento, eles fazem o “oito de contas”, que acontece quando uma fila de cavaleiros segue no sentido horário e a outra fila, no sentido anti-horário. Em frente à igreja Sagrado Coração de Jesus, os alferes balançam as bandeiras, fazendo venas com os mastros das divindades homenageadas. Ao término do ritual, todos descem de seus cavalos e as realezas são recebidas pela batuqueiras que dão continuidade à dança e às comemorações.
O ritmo do batuque costuma cativar a população em geral. Crianças, jovens, adultos, idosos, nativos e turistas entram na dança. De origem africana, o lundu tem sua coreografia própria, sendo que algumas mulheres dançam com garrafas de bebidas na cabeça, equilibrando-as em sincronia com a música. Atualmente, as vestimentas das batuqueiras são personalizadas para o batuque nas cores vermelho e branco. Saias compridas e rodadas, camisetas e lenços amarrados na cabeça imitam a indumentária do cotidiano dos tempos passados.
A Caçada da Rainha é uma tradição centenária, que traz vestígios do ciclo do ouro em suas danças e músicas e apresenta algumas das demonstrações de valores, crenças, hábitos e aspirações religiosas da cultura popular do nordeste goiano.